domingo, 29 de setembro de 2013

SANDRA CINTO::"PAUSA"::CASA TRIÂNGULO::08/10::SÃO PAULO-BRASIL.


Casa Triângulo tem o prazer de apresentar Pausa., nova exposição individual de Sandra Cinto na galeria.

Até a altura em que a vista consegue discernir algo, as paredes da sala – pintadas em cor próxima à de papel gasto – estão todas cobertas de finos traços horizontais e paralelos. A lembrança de pautas musicais é imediata, ainda que agigantadas e sem acolher qualquer notação de sons articulados. Abrigando somente o silêncio e a pausa, elas paradoxalmente evocam, por meio de sua ostensiva presença, o fato de serem lugares onde se marca, por meio da música, o inevitável fluir do tempo. Há algo, contudo, que perturba essa aproximação entre os campos visual e sonoro que Sandra Cinto promove. Em vez de regulares, como seria esperado desses suportes de escrita musical, os espaços entre as linhas riscadas nas paredes vão gradualmente se reduzindo desde cima e a partir de baixo, de modo que, em um dado ponto, quase se confundem em uma única linha mais grossa. Ao criar essa cadência visual de aproximação e de afastamento dos traços que formam as pautas, a artista sugere truncar a capacidade da música de marcar os momentos que passam. Faz que o desenho – expressão muda – demande a suspensão impossível do tempo que, ao fim e ao cabo, sempre corre.

Nessa mesma sala grande, Sandra Cinto ajunta ainda outros tantos índices da música que está ausente das pautas desenhadas. Instrumentos diversos – violoncelo, contrabaixo, violinos, flautas – são fixados ou apoiados na parede ou sobre o piso, sempre destituídos de sua função de emitir os sons que lhes são próprios. Alguns são mesmo combinados entre si ou com outros objetos para formar algo inédito, como se aproximados em cópulas que anulam seus atributos singulares. Outros, por terem sido de alguma maneira modificados ou por deles faltarem partes, tornam-se igualmente impossíveis de ser tocados. Os instrumentos feitos de madeira são pintados da mesma tonalidade das paredes, como se ecoassem, para além daquela superfície plana, o silêncio que emana delas. Sobre as superfícies sinuosas desses objetos de tocar, a artista faz desenhos que são, todavia, em tudo diversos das linhas regulares que cobrem os muros da sala: imagens de paisagens inventadas de montes ou mares, todos feitos de traços curvos e delgados. De novo, a evocação da música é aqui feita somente para pausá-la, como se os breves intervalos de silêncio entre sons que a tornam possível fossem fixados e alongados por duração incerta.
Na sala menor, aonde se vai subindo escada, a pauta desenhada nas paredes vira quase somente rodapé, como se até a já silenciosa remissão à música feita na outra sala não pudesse alcançar esse espaço. No centro de ambiente que convida à voz baixa e ao andar devagar, Sandra Cinto dispõe uma estranha vitrine que está dentro de outra e de mais uma terceira, na qual se guarda somente um caderno de pautas musicais e uma concha, construção natural capaz de reproduzir o murmurar do movimento das águas. Assim tão fechado por detrás de vidro, o livro não serve, contudo, para anotar música; tampouco é possível levar a concha ao ouvido para ouvir a memória do mar. Outra vez, uma pausa é criada para escutar, no espaço inventado da sala, o silêncio que quase o tempo inteiro escapa da vida ordinária.

Há, por fim, mais uma peça que a artista oferece aos outros, na qual torce e refaz os sentidos que se insinuam nas anteriores. Lá fora, já afastada do controlado ambiente das salas expositivas, encontra-se uma mesa feita para aproximar pessoas em torno de conversa calma e da partilha de qualquer coisa. Uma mesa que recorda, na construção e nos riscos que cobrem seu tampo, os objetos e as pautas musicais encontrados dentro da galeria, mas que com o uso incorporam, por meio de inevitáveis marcas e manchas, os rastros da passagem daqueles que ali sentaram e sentam. Como se nessa mesa Sandra Cinto finalmente conciliasse a vontade de pausar a vida e o reconhecimento de que tudo que nela passa provoca ruídos. Como se a mesa fosse música.

Moacir dos Anjos


To the point that the sense of sight manages to discern something, the walls of the room – painted in a color like worn paper – are all covered by thin horizontal and parallel lines. The resemblance to the staffs of a musical score is immediate, though they are oversized and lacking any notes. Denoting only silence and pause, their conspicuous presence nevertheless paradoxically evokes the fact that they are places where the inevitable flow of time is marked, by way of music. There is something, however, that perturbs this approximation between the realms of sight and sound fostered by Sandra Cinto. Instead of being regular, as would be expected of these supports for musical notation, the spaces between the lines on the walls gradually diminish as the top and bottom lines approach one another to the point where they look nearly like a single, thicker line. And by creating this visual cadence of approximation and distancing of the lines composing the musical scores, the artist suggests stripping the music of its capacity to mark the moments that pass. As a result, the drawing – a mute expression – demands the impossible suspension of time which, ultimately, is always flowing.

In this same large room, Sandra Cinto also includes other indices of the music that is absent from the drawn musical scores. Various instruments – a violoncello, a contrabass, violins and flutes – are fastened to or leaning against the wall, or else resting on the floor, always destitute of their function of emitting the sounds that are proper to them. Some are even combined with each other or with other objects to form something new, as though they were linked together in groups that annulled their individual attributes. Others, for having been somehow modified or because they lack parts, have also been stripped of the possibility of being played. Instruments made of wood are painted the same hue as the walls, as though they were echoing, beyond that planar surface, the silence that emanates from them. On the curving surfaces of these musical instruments, the artist has made drawings which are, however, totally different from the regular lines that cover the room’s walls: images of invented landscapes of mountains or seas, all made with thin, curving lines. Once again, music is evoked here only to be paused, as though the brief intervals of silence between the sounds that make it possible were fixed and lengthened for an uncertain duration.

In the smaller room, where the visitors climb steps, the musical score drawn on the walls nearly becomes a mere baseboard, a footnote, as though even the already silent reference to music made in the other room could not reach this space. In the center of the setting that beckons the visitor to whisper in hushed tones and to step softly, Sandra Cinto has placed a strange display case inside of another which is inside yet a third, the inmost one holding nothing more than a notebook of musical scores and a seashell, a natural construction able to reproduce the murmur of the sea’s movement. Enclosed so completely behind glass, the book does not serve to note down music; and neither can the seashell be picked up and placed to one’s ear to listen to the memory of the ocean. Once again, a pause is created in the invented space of the room, for the visitor to listen to the silence that is almost always missing from everyday life.

There is, finally, a further piece in which the artist twists and remakes the meanings that are implied in the previous works. There outside, beyond the controlled environment of the exhibition rooms, there is a table made to bring people together for a calm conversation about anything at all. A table that recalls – in its construction and in the lines that cover its surface – the objects and the musical scores found within the gallery, but which with use gathers inevitable smudges and marks as signs of the passage of those who have sat there. As if this table by Sandra Cinto could finally reconcile the desire to pause life and the recognition that everything in it makes noise. As though the table were music.

Moacir dos Anjos